A história do esporte feminino representa uma viagem turbulenta marcada pela luta por igualdade, liberdade e aceitação até os dias de hoje. Há apenas 100 anos, o exercício físico de mulheres era mal visto, incluindo qualquer prática de esporte. No século XIX, essa prática era até proibida, pois era percebida como atividade masculina, inestética para a mulher que, inclusive, prejudicaria o seu corpo. Em 1896, nos primeiros jogos Olímpicos em Atenas, não se permitiu a participação de mulheres, a não ser na função de `cheerleaders` para os atletas (homens), quer dizer, como público batendo palmas. Já em 1900, as disciplinas de golfe e tênis contaram, por primeira vez, com participação feminina. Patinagem artística no gelo, natação, arco e flecha seguiram pouco tempo depois. No entanto, essa participação continuou baixa nos eventos esportivos da primeira metade do século. Nas Olimpíadas de 1908, por exemplo, somente 1,8% dxs atletas eram mulheres. Mais 30 anos passariam, até o atletismo e a ginástica aparecerem no âmbito sportivo feminino. [1]
Mulheres jogando lawn tennis (Cosmos, 1912, no. 2 :48)
La mujer en el deporte (Fray mocho, 1926, No. 761 : 22)
O começo do esporte competitivo feminino no mundo
No começo do século XX, as mulheres começaram a rebelar-se contra as estruturas prevalecentes e introduziram o uso do short, em vez de usar vestidos longos. A partir da Primeira Guerra Mundial, a imagem da mulher moderna começou a tomar os contornos que mutatis mutandis mantém até hoje: magra, autoconfiante, culta e emancipada. Ao mesmo tempo, haviam muitos que argumentavam contra o esporte feminino, alegando p. ex. preocupações médicas. Não querendo deixar o esporte, um grupo de francesas fundou uma associação para organizar os primeiros jogos olímpicos para mulheres em 1921. [2]
As revistas culturais também refletem esse processo lento, contando, nesse período, principalmente com artigos sobre tênis, golfe, natação, e atletismo femininos, além de relatar sobre como, por exemplo, o futebol e “esportes masculinos”, não deveriam ser praticados por mulheres. As mulheres são majoritariamente retratadas como damas elegantes ao praticarem esporte, graciosas em seus movimentos e suas silhuetas.
O interessante é que foram os esportes das elites, como o tênis, o golfe e a natação, aqueles cuja prática começou a ser aceita também para mulheres, pois esses seriam mais “estéticos” para o corpo feminino. Mesmo assim, parece mais uma consequência das atividades das mulheres aristocratas modernas e cultas, que eram as únicas com a oportunidade de criar um ambiente esportivo para que as mulheres pudessem praticar e inclusive competir nos esportes. Uma pioneira do esporte profissional foi Suzanne Lenglen, uma tenista francesa que conseguiu se estabelecer como esportista no mundo do tênis. Nas revistas culturais portuguesas e argentinas, ela é uma das mulheres sobre as quais frequentemente surgiram artigos, entusiasmando-se pela tenista como “mito esportivo”. Esse post dedicar-se-á aos inúmeros artigos sobre o esporte, principalmente o tênis feminino, e sobre como a tenista Lenglen abriu o caminho do esporte para as mulheres.
Tennis, tournoi de Wimbledon : la Reine d’Angleterre serrant la main à Suzanne Lenglen : [photographie de presse] / Agence Meurisse von Agence de presse Meurisse. Agence photographique – 1926 – Bibliothèque nationale de France, France – No Copyright – Other Known Legal Restrictions. https://www.europeana.eu/de/item/9200518/ark__12148_btv1b9025590j
O tênis no esporte feminino
O tênis, primeiramente conhecido como tênis de gramado, foi introduzido em 1873 por um aristrocata inglês. Já pouco depois, em 1877, ocorreu o primeiro torneio de Wimbledon. Mulheres somente começaram a participar dos torneios em 1884. Em Wimbledon, as mulheres – todas, sem exceção, das classes altas – ainda vestiam chapéus e vestidos longos até os tornozelos. Os campeonatos de tênis não eram necessariamente atividades dedicadas (apenas) ao esporte, mas um lugar para as mulheres encontrarem futuros parceiros. [3]
Na França do início do século XX compreendia-se o valor dos esportes para a sociedade. Portanto, não é surpreendente que justamente uma tenista francesa conseguiu obter o título de melhor jogadora do mundo da sua época.[4]
Por ser um esporte de aristocratas, da elite, mulheres já vinham participando do tênis como espectadoras há algum tempo, quando Lenglen começou a se tornar conhecida. Ela ganhou boa reputação entre as damas abastadas e os seus maridos e muita popularidade com a elite europeia.[5] Num comentário na revista Mundo Argentino, lê-se que Lenglen foi convidada para jogar algumas partidas na Áustria, inclusive contra a campeã austríaca Sra. Nepach, casada com uma figura importante da elite alemã. Como esse alemão não queria ver a sua esposa perder, proibiram Lenglen de jogar, o que teve uma grande repercussão não só esportiva, como também política e social e resultou, enfim, na realização da partida e na vitória de Lenglen. [6]
Por qué no se ha casado aún Suzanne Lenglen (Mundo Argentino, 1925, no. 755 :14)
Susana Lenglen, impedida de jugar con alemanes o parientes de alemanes (Mundo Argentino, 1925, no. 755 :14)
As revistas também atuam como veículos para o know-how da tenista. Em um artigo da revista Athénas , por exemplo, a tenista Lenglen relata as técnicas do tênis e explica porque o voleio é um golpe funtamental e deveria ser utilizado mais durante o jogo. Ela informa como tenistas devem segurar a raquete e quais são as estratégias e oportunidades do jogo de voleio. Desse modo, é uma mulher que explica o esporte e dá dicas e instruções para uma melhora do jogo e promove o esporte também para as mulheres. [7]
Em outro artigo, na revista portuguesa A Novela, Lenglen era retratada como uma “admiravel rapariga” que empolgava quando empunha uma “raquette” e era “um nome illustre no esporte mundial”. Em um convite de outras jogadoras de Portugal, Lenglen é convidada para jogar, mas o autor observa que Lenglen não deveria ter vindo a Portugal, sendo que “em Portugal não poderia encontrar competidoras e, além disso, os portugueses ignorantes não saberão valorizar seu jogo extraordinario. [8] Outro artigo pergunta porque Lenglen (ainda) não se casou, o que ela explica com a falta de aceitação dos homens pelo esporte feminino. [9]
El tenis Consejos de una campeona (Revista Athéna,1928, No. 4: 31)
Mlle Lenglen [Championnats du monde de tennis de terre battue à Saint-Cloud, portrait de la joueuse] : [photographie de presse] / [Agence Rol] von Agence Rol. Agence photographique – 1914 – Bibliothèque nationale de France, France – No Copyright – Other Known Legal Restrictions. https://www.europeana.eu/de/item/9200518/ark__12148_btv1b530512911
Numa entrevista na revista El hogar, Lenglen narra a sua carreira de tenista, como tudo começou quando era bem jovem e como rapidamente se tornou a melhor jogadora do mundo ganhando a sua primeira partida importante em Wimbledon, em 1919 contra Mrs. Lamber Chambers. Lenglen também explica como a profissão de tenista a exauriu depois de certo tempo e que queria mais liberdade. Ela afirma que foi essa a razão para a sua pausa de três anos, quando descobriu a sua paixão pelas viagens e entendeu que não queria voltar a ser campeã, pois sobrava-lhe pouca vida correndo de um torneio a outro. Na entrevista, ela também fala da roupa que uma mulher deve usar durante o tênis, e se manifesta contra o uso da calça, preferindo a saia meio longa. [10] Nesse sentido, Lenglen foi uma pioneira na moda esportista, pois foi a primeira a usar uma saia mais curta e vestidos sem mangas. Lenglen não era somente uma tenista. Ela foi uma das mulheres que se rebelou aos conceitos ultrapassados do que era “ser mulher”. Ela se atreveu a usar roupas diferentes e extravagentes na quadra, mostrando decote, braços e pernas, o que na época era considerado um escândalo. Para ela, o aspecto mais importante da moda de tênis era a sua utilidade. A quadra de tênis era o lugar onde a moda era exibida, mas as roupas eram pouco práticas para practicar esportes. Lenglen opôs-se a esses modelos e, possivelmente, foi essa liberdade que a roupa proporcionava aos seus movimentos que lhe permitiu ganhar tantas partidas. [11]
Por que no volveré a dedicar-me al tenis (El hogar, 1932, No.1181: 40)
Além disso, Lenglen logrou tornar-se uma mulher que o mundo inteiro queria ver jogar. O seu comportamento e sua roupa pouco padrão foram aceitos, de uma forma geral, porque a campeã gozava de grande popularidade. A notoriedade de Leglen também foi responsável pelo aumento dos preços dos ingressos, aumentando também o valor dos prêmios para as vencedoras. Lenglen foi a primeira mulher que conseguiu garantir a sua subsistência por meio do esporte. [12]
No livro do licenciado mexicano José M. Bello sobre as estratégias e técnicas do tênis, publicado em 1936, Lenglen é a única mulher retratada. Isso, mesmo a melhor jogadora em 1936 sendo Helen Wills Moody que ganhou 19 títulos de Gran Slam e manteve na posição número um por bom tempo. Lenglen, no entanto, já havia deixado de jogar há dez anos nessa época, e trabalhava como treinadora de tênis em sua recém-criada academia. [13]
Lenglen não só influenciou o tênis mundial feminino, mas pode também ser considerada promotora do esporte feminino como um todo e de uma maior liberdade para mulheres, inclusive no seu vestuário. Possivelmente por isso, ela é descrita como a Deusa da quadra nos inúmeros artigos sobre ela publicados. [14]
Um golpe de Mlle. Lenglen (Pelo Mundo, 1922, No. 10: 132)
[Wimbledon 1920, double mixte] Miss Lenglen [et Gerald] Patterson : [photographie de presse] / [Agence Rol] von Agence Rol. Agence photographique – 1920 – Bibliothèque nationale de France, France – No Copyright – Other Known Legal Restrictions. https://www.europeana.eu/de/item/9200518/ark__12148_btv1b53115059m
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Referências Bibliográficas
Bello, José M. (1936). Tratado Elementar de Tennis. Mexico D.F.
Curi, Martin. (2013). Brasilien – Land des Fußballs. Verlag die Werkstatt GmbH: Göttingen.
Kincses, Gábor; Ormos, Mihály; Bartha, Zsolt. (2021). Motivational peculiarities of elite women tennis players from the post-socialist countries. Entrepreneurship and sustainability issues Vol. 8 Nr. 3. Vilnius: Entrepreneurship and Sustainability Issues.
Revista Athéna. (1928). https://digital.iai.spk-berlin.de/viewer/toc/81773550X/1/LOG_0000/
Revista Cosmos. (1912) https://digital.iai.spk-berlin.de/viewer/toc/88391235X/1/LOG_0000/
Revista Fray Mocho. (1926) https://digital.iai.spk-berlin.de/viewer/toc/844129127/1/-/
Revista el Hogar. (1932) https://digital.iai.spk-berlin.de/viewer/toc/798843950/1/LOG_0000/
Revista Mundo Argentino. (1924/1925) https://digital.iai.spk-berlin.de/viewer/toc/826381200/1/LOG_0000/
Revista Pelo mundo. (1922) Pelo mundo … – Ibero-Amerikanisches Institut (spk-berlin.de)
SWR Sport. (24.3.2021). Vom Verbot bis aufs Podest: Die Geschichte des Frauensports, URL: https://www.swr.de/sport/frauen-im-sport/geschichte-des-frauensports-100.html.
Wagg, Stephen. (2011). ʼHer Dainty Strengthʼ: Suzanna Lenglen, Wimbledon and the coming of Female Sport Celebrity. In: Myths and Milestones in the history of sport. Great Britain: Palgrave Macmillan.
SWR Sport. Vom Verbot bis aufs Podest: Die Geschichte des Frauensports [24.3.2021, 20:42Uhr] URL: https://www.swr.de/sport/frauen-im-sport/geschichte-des-frauensports-100.html.
[1] https://www.swr.de/sport/frauen-im-sport/geschichte-des-frauensports-100.html
[2] https://www.swr.de/sport/frauen-im-sport/geschichte-des-frauensports-100.html
[3] Wagg, p. 124
[4] Wagg, p. 124
[5] Wagg, p. 125
[6] Mundo Argentino, 1925, no. 777 :11
[7] Athéna, 1928, No. 4 :31
[8] A novela, 1923, No. 2: 15
[9] Mundo Argentino, 1925, no. 775: 14
[10] El hogar, 1932, No.1181: 40
[11] Wagg, p. 128
[12] Wagg, p. 126 ff.
[13] Bello, Lámina 16
[14] Wagg, p. 126